DIREITOS HUMANOS NO BRASIL 2014
Em 2013 foram documentados
312 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no Brasil, incluindo uma
transexual brasileira morta no Reino Unido e um gay morto na Espanha. Um
assassinato a cada 28 horas!
Uma
bomba na casa de Wilma: a face da homofobia no Brasil
Eduardo Piza Gomes de Mello*
A
bomba caseira
Na madrugada de 13 de
novembro de 2013, por volta das três e meia, quando Wilma já tinha levado suas
cachorrinhas até o quintal e retornado para seu quarto pensando em retomar o
sono, um objeto caiu em seu quarto, atirado pela janela. Era uma bomba caseira,
arremessada da rua. Explodiu imediatamente, lançando estilhaços que atingiram
seu rosto, garganta e peito.
Wilma desmaiou. Recorda que
só retomou os sentidos dois dias depois, 15 de novembro, no Hospital Cema, na
Mooca. Foi quando soube que os estilhaços que atingiram seu olho esquerdo
haviam provocado a perda da visão, para sempre.
Foram lavrados dois boletins
de ocorrência no 10º Distrito Policial de Cangaíba, bairro da Zona Leste, na
periferia de São Paulo. Ficaram registrados com os números BO 13126 e BO
13128/2013. Depois foi iniciada a investigação do crime, a cargo da delegacia
especializada em repressão aos delitos de intolerância, a Delegacia de Polícia
de Repressão aos Crimes Raciais e de Delitos de Intolerância (Decradi).
Trata-se do Inquérito Policial 151/2013.
Wilma permaneceu internada
até o dia 17. E logo em seguida, no dia 18, submeteu-se a exame de corpo de
delito no Instituto Médico Legal (IML). Também prestou esclarecimentos na
Decradi em 3 de dezembro, e disse à autoridade policial que desconfiava que
alguns de seus vizinhos teriam lançado a bomba.
Em 16 de dezembro foram
ouvidas as testemunhas Rogerio, Gisele e Ricardo, seus amigos, que a socorreram
após a explosão, e sua irmã Sueli. Rogerio declarou que Wilma tinha alguns
desafetos entre seus vizinhos e que já presenciara discussões entre eles. A
irmã, Sueli, contou que permaneceu na casa de Wilma durante quatro dias,
aguardando a visita de peritos policiais, para a análise dos estilhaços da
bomba. Chegou a ligar várias vezes para o 10º DP e para o Instituto de
Criminalística, pedindo a presença dos peritos. Como ninguém apareceu até 17 de
novembro, decidiu limpar a casa, preparando-a para a volta da irmã.
Tanto Rogerio como Sueli
declararam ter visto pedaços de cabo de vassoura no interior do quarto e do
lado de fora da casa, o que poderia ser parte do artefato que explodiu.
Ricardo, outra testemunha,
disse que viu a janela projetada para dentro do quarto em razão da explosão da
bomba e que Wilma estava muito machucada. Ele disse em seu depoimento que
acredita que a amiga foi vítima de homofobia.
Gisele, esposa de Ricardo,
contou que é amiga de Wilma desde quando eram crianças e que a socorreu na
noite da explosão. Lembrou dos ferimentos que apresentava no rosto, pescoço,
peito, olhos e braço e que a casa estava destruída. Também assinalou que Wilma
enfrentava problemas com um vizinho, que teria matado um dos cachorros dela.
Contou ainda que Wilma havia
recebido uma carta anônima, ameaçando-a de morte até o mês de dezembro.
A ameaça de morte não era
uma fantasia. De fato, Wilma já havia ido cinco vezes ao 10.º DP apresentar
queixas contra seus vizinhos, alegando ameaças e injúrias contra ela. Os
boletins revelam um longo histórico de conflitos, no qual ela aparece
reiteradamente na qualidade de vítima e ofendida. O primeiro deles foi
registrado em 2008, cinco anos antes da explosão. A lista toda é a seguinte:
1. Boletim 6349/2008, 10º DP
– Wilma vitima de lesão corporal e injuria;
2. Boletim 900414/2010 10º
DP – Wilma sofre ameaça, acusado mostra arma de fogo na cintura;
3. Boletim 9443/2012 10º DP
– Wilma sofre ameaça e injuria;
4. Boletim 10004/2013 10º DP
– Wilma sofre ameaça e injuria e
5. Inquérito Policial 116/13
– DECRADI Quando se observa com atenção o Inquérito Policial 151/2013, que apura
a explosão da bomba que cegou Wilma, é possível perceber que o Instituto de
Criminalística, apesar de oficiado, não realizou a perícia no local (fls. 85,
105, 167 e 171/172).
Quanto à carta anônima que
lhe fora enviada depois da explosão da bomba, esta foi juntada aos autos do
inquérito. As pessoas suspeitas de serem autoras da carta foram intimadas a
comparecer e prestar esclarecimentos à policia.
Todos os suspeitos negaram
autoria do crime de lesão corporal dolosa. Afirmaram que “ignoravam” que Wilma
era “homossexual” e que ela tinha muitos desafetos. Uma das suspeitas chegou a
afirmar que Wilma fora vista manuseando pólvora na calçada defronte a sua casa
dias antes da explosão da bomba. Até indicou o nome de outro suspeito que teria
presenciado a cena. Este suspeito, porém, negou.
Passados mais de oito meses,
a autoridade policial responsável pelo caso, na delegacia especializada em
combater delitos de intolerância, redigiu um relatório final, encerrando as
investigações, sem apontar nenhum culpado. Na verdade, o relatório, com data de
27 de julho de 2014, não tem sequer prova da ocorrência do crime, uma vez que
não consta dos autos o laudo do exame pericial do local, comprovando a explosão.
O único fato incontestável é a perda da visão de Wilma.
O promotor público José Baso
Junior, porém, não se conformou com o relatório que recebeu. Após analisa-lo
com atenção, devolveu às autoridades policiais, pedindo novas diligências,
entre elas o laudo de exame de corpo de delito; o laudo perinecroscópico
buscando vestígios; e a elaboração de confronto grafotécnico entre as grafias
dos suspeitos e as grafias da carta anônima de ameaça.
Wilma,
de bancário a auxiliar de enfermagem transexual
Wilma nasceu e foi
registrada e batizada como Wilson há 59 anos, no bairro de Cangaíba, o mesmo
local onde reside. Aposentou-se há 8 anos como técnica de enfermagem, servidora
pública estadual do Hospital das Clínicas.
Ela estudou enfermagem na
Faculdade Farias Brito em Guarulhos, na região metropolitana de São Paulo.
Durante os 28 anos de trabalho como técnica de enfermagem afirma que não sofreu
discriminação. Possuía, no entanto, dois crachás: um com o nome do registro
civil, para identificação burocrática e movimentação bancária; e outro com o
nome social, que usava no atendimento ao público e nas atividades ao lado dos
médicos. “Naquele tempo isto era uma raridade”, conta ela, referindo-se ao
tratamento singular.
Wilma refere-se de maneira
afetuosa ao cardiologista Euryclides de Jesus Zerbini, o doutor Zerbini, autor
do primeiro transplante de coração no Brasil, com quem trabalhou. Diz que
sempre foi tratada com respeito e que certa vez foi personagem de uma
reportagem na revista Manchete, como a “instrumentadora do ano.”
Conta que sempre teve apoio
de sua mãe. Certa vez, quando seu pai quis expulsá- -la de casa por ser
transexual, a intervenção da mãe foi definitiva: “Quer que ela saia? Vá você.
Minha filha fica.”
Aos 20 anos, quando
trabalhava como bancária numa agência do Bradesco, no bairro da Liberdade, na
região central de São Paulo, tinha que vestir terno e esconder os cabelos
longos. Enrolava-os com uma touca e cobria com uma peruca. Não conseguiu,
porém, manter a farsa por muito tempo.
Incomodada, pediu ao gerente
para ser demitida. Queria sacar o Fundo de Garantia (FGTS) para se dedicar à
enfermagem. A recusa do gerente ao seu pedido levou-a a uma atitude corajosa e
desafiadora: soltou o cabelo, vestiu uma saia xadrez com pregas, calçou um
sapato de salto alto e foi trabalhar. Deu certo: em menos de 24 horas estava
demitida.
Somente depois que se
aposentou e passou a conviver mais assiduamente com os vizinhos do bairro foi
que sentiu a hostilidade e o preconceito contra sua identidade de gênero. Wilma
não é uma profissional do sexo, não está sujeita à violências das ruas e tem
uma situação estável do ponto de vista econômico, social e afetivo. Mesmo
assim, tem sido vítima de agressões dos vizinhos.
Uma
cidadã desprotegida
Corajosa e altiva, ela já
denunciou esses fatos às autoridades, como foi narrado aqui. Os instrumentos
legais de proteção e segurança policial oferecidos pelo Estado, no entanto, não
se mostraram eficientes para defender e tutelar uma cidadã transexual. Embora
integrada aos meios produtivos e de consumo, ela não desfruta de garantias
constitucionais de proteção aos direitos humanos.
Wilma tem buscado apoio na
estrutura policial desde 2008, procurando proteger sua integridade física e
moral em face da violência transfóbica.
Após as exigências do
Ministério Público, a apuração no Inquérito Policial 151/2013 passou a
focalizar a ocorrência de lesão corporal dolosa com maior atenção. Até então a
polícia havia deixado passar em branco os laudos periciais no local do crime e
a apuração da autoria da carta anônima.
Os suspeitos alegaram até
que não sabiam que Wilma era “homossexual”, apesar da vítima residir no bairro
há mais de 50 anos e dos incidentes relatados nos boletins de ocorrência
anteriores, com seus nomes citados.
A
criminalização da homofobia
A história de Wilma não é um
caso isolado. Reflete um quadro de violência que se repete em todo o país,
decorrente em grande parte da inexistência de uma lei que criminalize
diretamente a homofobia, reivindicada há anos pela comunidade formada por
lésbicas, gays, bissexuais e transexuais, mais conhecida pela sigla LGBT.
Em 17 de dezembro de 2013,
quase na mesma data em que Wilma perdeu a visão em decorrência do ataque à sua
residência, o senado atropelou mais uma vez os anseios desse grupo. Foi quando
a Comissão de Direitos Humanos, ao tratar da questão do PLC 122, que propõe a
criminalização da homofobia, equiparando-a ao racismo, votou pelo apensamento
do projeto a um outro debate, muito mais amplo, que é o projeto de alteração do
Código Penal.
Isso significa que o PLC 122
deixou de tramitar isoladamente, como vinha ocorrendo há dez anos. Foi uma
estratégia para postergar ainda mais a discussão, uma vez que o projeto de
reforma do Código Penal não deve ser discutido nem votado a curto ou a médio
prazo. Foi também a sinalização do desinteresse do governo federal e da maioria
dos partidos políticos pela questão da criminalização da homofobia.
Violência
permanece e governo não reage
Segundo dados registrados
pela Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República, foram
assassinadas 310 pessoas em 2012 por motivação homofóbica (1). Outro
levantamento, realizado pela organização não governamental Grupo Gay da Bahia
(GGB) – traz números igualmente alarmantes sobre crimes homofóbico (2).
Segundo esse relatório, “em
2013 foram documentados 312 assassinatos de gays, travestis e lésbicas no
Brasil, incluindo uma transexual brasileira morta no Reino Unido e um gay morto
na Espanha. Um assassinato a cada 28 horas!”
Ainda segundo o GGB, houve
um pequeno decréscimo (- 7,7%) no número de assassinatos, na comparação com o
ano anterior. Numa perspectiva histórica mais longa, porém, o que se observa é
uma tendência ao crescimento da violência. Embora o número de homicídios tenha
caído, como registrou o GGB, a violência geral contra LGBT aumentou. O serviço
de Disque 100 do Governo Federal também registra esta tendência.
O governo da presidenta
Dilma Rousseff manteve uma atitude errática em relação à pauta do movimento
LGBT. Ora criou embaraços para ações em favor de políticas para a educação e
combate à homofobia, inclusive influenciando negativamente junto ao Congresso
para retardar o debate e a votação da criminalização da homofobia; e ora
procurou promover no exterior a imagem do Brasil como país que dedica esforços
ao combate à homofobia. Liderada pelo Brasil, uma resolução foi aprovada na
Organização das Nações Unidas (ONU) em 26 de setembro de 2014, introduzindo de
forma definitiva o debate sobre a violência homofóbica na agenda das Nações
Unidas. Na prática, o documento transforma a ONU em um instrumento para expor e
denunciar governos que criminalizam a homossexualidade (3).
Campanha
presidencial de 2014
A pauta LGBT ocupou um
espaço relevante na campanha presidencial do segundo semestre de 2014. A
candidata Marina Silva, do PSB, surpreendeu a todos quando apresentou, em
agosto, no bojo de seu programa de governo, um capítulo no qual prometia se
empenhar na defesa de todas as reivindicações básicas do movimento social e da
comunidade LGBT. Porém, a reação contrária das lideranças evangélicas
fundamentalistas, levaram-na a alterar o programa em menos de 24 horas após seu
lançamento. Diante das ameaças de perda de voto dos evangélicos, que constituem
uma fatia importante de seu eleitorado, conforme apontam pesquisas eleitorais,
ela preferiu não se comprometer com a defesa do casamento igualitário, da
criminalização da homofobia e da aprovação de leis para facilitar a alteração
do registro civil de nome e sexo de transexuais e travestis. A candidata alegou
que havia ocorrido um erro na edição do programa.
Outro caso que teve destaque
foi o que envolveu o candidato à presidência da República pelo PRTB, Levy
Fidelix. Ao fazer considerações claramente homofóbicas e ofensivas aos LGBT e à
união entre pessoas do mesmo sexo, durante um debate entre os candidatos, em
rede nacional de televisão, em 28 de setembro, ele provocou uma onda de
indignações e protestos. Um dia depois de suas declarações, nas quais se
incluíam incitações ao enfrentamento dos homossexuais, cerca de quatro mil
pedidos para processá-lo haviam sido encaminhados Secretaria Especial de
Direitos Humanos da Presidência da República. O candidato disse, literalmente:
“Tenho 62 anos, pelo que
eu vi na vida, 2 iguais não fazem filho, e digo mais, aparelho excretor não
reproduz. Não podemos jamais deixar que tenhamos esses que aí estão fazendo,
escorando essa minoria à maioria do povo brasileiro. Eu como pai, avô, que tem
vergonha na cara, ensinar os seus filhos e netos. Eu vi agora o Papa expurgar o
padre pedófilo. Então, eu lamento, que façam bom proveito, mas como presidente,
eu jamais vou estimular essa prática. Você já imaginou se come- çarmos a
estimular isso aí, vamos reduzir a população brasileira pela metade. Vamos
enfrentar esse problema. Essas pessoas que têm esses problemas que sejam
atendidos por ajudas psicológicas, mas longe da gente.”
Procurada por jornalistas e
entidades de defesa dos direitos humanos, sobre a possibilidade de cassação do
registro da candidatura do representante do PRTB, a Procuradoria Geral
Eleitoral do Ministério Público Federal respondeu que ele não havia violado
nenhuma norma da legislação eleitoral. Se houvesse a tipificação do crime de
homofobia, informou-se também, o candidato poderia perder o registro.
Estrutura
seletiva de defesa de LGBT
A narrativa do caso de Wilma
neste relatório tem por fim deixar exposta a ineficiência do aparato policial
na apuração de casos que envolvem violência contra transexuais, travestis, gays
e lésbicas.
A falta de uma legislação
específica sobre criminalização de homofobia foi totalmente irrelevante, uma
vez que sequer houve preocupação em realizar perícia no local da explosão da
bomba, independentemente da incidência de motivação homofóbica. Nem a lei penal
geral chegou a ser observada no caso dessa cidadã, como se não tivesse os
mesmos direitos que outros cidadãos brasileiros.
Na Secretaria de Justiça do
Estado de São Paulo há uma Comissão Especial que apura denúncias contra LGBT,
com base na Lei Estadual 10.948/2001, que pune administrativamente casos de
discriminação em razão da orientação sexual e da identidade de gênero. Os casos
de maior incidência de denúncias para a Comissão Especial referem-se à
repressão do uso de banheiros femininos em locais públicos por transexuais e
travestis e de manifestações de afeto entre pessoas do mesmo sexo em locais
públicos. A Defensoria Pública do Estado de São Paulo possui uma unidade
específica que presta assessoria jurídica para estes casos que envolvem tais
denúncias administrativas.
Apesar da indubitável
importância desse trabalho em torno da aplicação da Lei 10.948/2001, é
necessário salientar a existência de um viés político na aplicação da política
pública referente a casos que envolvem repressão à intolerância e homofobia. As
atividades de repressão policial e de averiguação do trabalho de investigação
nas delegacias, para saber se os cidadãos e cidadãs LGBT estão tendo os
direitos minimamente respeitos, estão muito aquém do que deveria ser feito.
* Eduardo Piza Gomes de Mello – Advogado,
especialista em Direito Público, membro da ONG Instituto Edson Neris IEN e
diretor do SASP – Sindicato dos Advogados de São Paulo.
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