Não é só acordo nuclear e a busca de apoio para a obtenção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU que leva o Brasil a se interessar pelo Irã. A ajuda humanitária a refugiados do regime dos aiatolás também faz parte da agenda entre os dois países. Uma prova disso é que o Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, órgão do Ministério da Justiça, concedeu no dia 21 de maio o status de refugiado a um jovem iraniano, de 29 anos, que aportou em terras brasileiras no final do ano passado. O mais interessante, neste caso, além da nacionalidade saia justa do refugiado, é a razão do pedido: a sua orientação sexual, ele é gay.
Minha participação pessoal nesta história deu-se a partir de janeiro, quando a organização internacional Human Rights Watch solicitou o auxílio da nossa entidade, Instituto Edson Neris - IEN, através do companheiro Beto de Jesus, para acompanhar o caso. Beto, à época, morava no Rio de Janeiro. Contamos também com a assessoria de Sonia Correa, pesquisadora associada da ABIA e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política. O acompanhamento do caso passou a ser feito por mim, aqui de São Paulo, onde estava o refugiado.
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Neste meio tempo Mohammad morou em albergue e em hotéis da Praça da Sé, passou o Natal e o Ano Novo sozinho nesta terra que jamais pensou um dia viesse a conhecer. Ele não fala português, e "male mal" fala inglês. De tudo fez um pouco em sua vida, no Irã: de dono de mercado, a gerente de fábrica de perfumes, passando por treinador de cavalos e mecânico de automóveis.
O menino comeu o pão que o diabo amassou com a polícia política do Irã. Estava ele numa das manifestações de protestos contra o resultado das eleições presidenciais, sob suspeita de fraude, em junho de 2009, quando foi reconhecido por seu ex-vizinho, que é um agente da polícia política. Alguns dias depois sua casa foi invadida, seus pais e irmãs espancados e seus bens apreendidos, inclusive fotos e laptop. Sua conta bancária foi bloqueada. Quando a polícia violou o conteúdo de seu computador, descobriu que, além de opositor do regime, Mohammad era também gay, pois bicha que se preza não resiste a ter um montão de fotos e de vídeos de festas com as amigas, tudo armazenado no laptop.
Já escrevemos sobre o tema anteriormente neste mesmo blog, destacando que no Irã a homossexualidade é crime que pode ser penalizado com a execução por enforcamento ou apedrejamento.
Já escrevemos sobre o tema anteriormente neste mesmo blog, destacando que no Irã a homossexualidade é crime que pode ser penalizado com a execução por enforcamento ou apedrejamento.
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Com algumas manobras Mohammad conseguiu sair de Teerã de avião, para Moscou, e de lá para Havana, Cuba. Na ilha de Castro ficou por 50 dias, como turista, e depois tentou chegar ao México. Porém, mal desembarcou, os muchachos de la imigracion já o puseram de volta no avião, com ameaça de deportação para o Irã. Sua passagem aérea previa uma parada em São Paulo, mas aqui também não foi recebido de braços abertos, ao contrário do que usualmente faz o Redentor. Ficou detido, e igualmente sob constante ameaça de deportação. Ele bem sabia o que o aguardava na volta ao Irã: julgamento sumário e execução por ser gay e por traição ao país. De junho a dezembro de 2009 Mohammad ficou errante, correndo de país em país.
Acompanhamos Mohammad desde janeiro e nestes meses pudemos conhecê-lo e à sua história. Sua irmã está refugiada nos Emirados Árabes, após ter sido presa e espancada pela polícia iraniana, por ter se recusado a denunciar o paradeiro do irmão. Seus pais são de classe média e não têm engajamento político partidário, antecedentes criminais, nem vinculações com opositores do regime dos aiatolás. São aposentados. Mohammad é um gay que, de um dia para o outro, teve sua orientação sexual revelada num país onde homossexualidade é crime, punível com execução. Sua família foi advertida expressamente pela polícia: "Diga para seu filho que iremos apedrejá-lo (por que é gay) e depois o levaremos para ser julgado por traição."
Nossos esforços foram sempre para lhe oferecer solidariedade e segurança, para compensar aquele período anterior de terror, perseguição e abandono. Com a dificuldade de comunicação, o apresentamos a um tradutor do idioma persa, farsi, o que melhorou seu desempenho durante as entrevistas no CONARE. Mohammad teve que convencer as autoridades brasileiras de que sua história não era estória. Desfrutamos de sua companhia em alguns passeios e viagens, e o orientamos sobre a melhor condução no relacionamento com as autoridades brasileiras e ongs internacionais.
A principal estratégia foi manter o sigilo. Evitar a publicidade. Não permitir que este assunto fosse usado por interesses políticos em ano de eleição, nem tampouco por setores da imprensa que fazem oposição à política externa do atual governo e consideram a aproximação de Lula com o Irã uma bobagem. Além disso, o sigilo não chamaria a atenção do governo iraniano para o nosso personagem.
Olga Benario
No começo do mês de maio conseguimos uma entrevista com o Ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, através da FLI - Frente para Liberdade do Irã, associação brasileira de entidades que advogam o respeito aos direitos humanos naquele país. Na oportunidade o caso de Mohammad foi exposto com detalhes, e pedimos a intervenção do ministro junto ao Conare. Outra personalidade que também auxiliou foi Pedro Chequer, representante da Unaids no Brasil. Por fim, depois de quatro meses, tudo saiu como desejado. O status de refugiado foi concedido por razões humanitárias, com a constatação de violações de direitos humanos.
Dois fatos distintos chamaram minha atenção neste emaranhado de coisas. O primeiro foi uma sensação de certa indiferença, quando não de preconceito, que o assunto homofobia e violência contra LGBTs no Irã tem provocado em alguns grupos LGBTs brasileiros. Com exceção de um ou outro oportunista, que explorou o mote para criticar a viagem do presidente Lula, os demais ficaram silentes. Alguns até preferiram enfrentar o tema com análises e justificativas políticas e ideológicas. Chegaram a sustentar que criticar o Irã seria fazer alinhamento com a política externa dos Estados Unidos. Lembrei e comparei a situação com aquela piada irônica de técnicos e especialistas em alimentação, que se reúnem em jantares nababescos, para discutir o problema da fome no mundo.
Sem julgar ninguém, sinto que falta mais discussão e conscientização sobre a institucionalização da homofobia como política de estado em alguns países, onde a homossexualidade pode ser punida até com pena de morte, tais como: Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iêmen e em determinadas regiões da Nigéria e da Somália. Sem esquecer os outros países, que não matam mas prendem homossexuais, como Malawi.
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Eu fiquei muito satisfeito por ter participado, ao lado de outras pessoas, do trabalho em defesa dos direitos de um perseguido político, de consciência, cujo crime foi ter nascido gay e cujo preço para se manter vivo foi abandonar seu país e sua família. Na impossibilidade de ir até Brasília, na semana retrasada, foi assim que eu marchei e gritei contra a homofobia.
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Mohammad, benvindo ao Brasil. Se joga mona !
PS.- O jornal O Estado de São Paulo está publicando neste domingo, 30.05.2010, uma reportagem com a história de Mohammad. Abaixo segue o link que dá acesso a uma parte da reportagem. Só assinantes têm acesso ao texto integral.
Leia a matéria do Estadão clicando aqui
* o nome fictício Mohammad, muito popular no Irã, foi escolhido pelo próprio iraniano e acabou sendo usado na reportagem publicada pelo Estadão.