Egodistonia e Homofobia, ou Pânicos morais engendram personalidades doentias
Um pouco sobre J. Edgar Hoover
Por Rita Colaço*



J. Edgar Hoover
Acabo de ler o artigo Entre Tapas e Beijos, de Anthony Summers, originalmente publicado no The Observer e republicado na edição 680 da revista Carta Capital. Anthony Summers é autor do livro Official and Confidential: The secret life of J. Edgar Hoover (lançado em 1993, a editora Ebury prepara para ainda este mês uma edição nova). Ele foi o primeiro diretor do FBI, cuja gestão durou nada menos do que 48 anos – de 1924 a 1972! Esse artigo trata do mesmo tema de seu livro: da vida secreta do “gigante” da espionagem estadunidense.
Homossexual, Hoover, coerentemente com o contexto cultural da época em que viveu, tudo fez para manter a sua orientação sexual sob rigorosa clandestinidade. Sabia que, caso assim não procedesse, teria sua carreira e reputação inteiramente destruídas, tornando-se um pária, um ser vil e abjeto exclusivamente em razão dessa peculiaridade em sua personalidade.
E foi assim que vivenciou o longo e assíduo relacionamento com o seu assessor, Clyde Tolson. Embora “Washington inteira” soubesse “que os dois jantavam diariamente juntos, tiravam férias juntos, faziam tudo juntos, menos morar”, Hoover, à semelhança do menino Pedro, cuja história Eliane Brum partilha conosco, através da Revista Época, tudo fazia para inviabilizar qualquer identificação entre si e a homossexualidade. Para tanto, construiu uma imagem pública de intolerante para com a homossexualidade, perseguindo outros homossexuais.
Ter de viver todos os minutos e segundos do dia temendo que alguém descobrisse esse aspecto íntimo de sua personalidade terminou por fazer surgir no todo-poderoso diretor do FBI um comportamento paranóico. A possibilidade de que sua orientação sexual se tornasse do conhecimento público era algo que o deixava permanentemente angustiado. Conforme nos relata Summers, em sua busca desesperada pela não identificação enquanto gay, Hoover passou a atacar e expor outros homossexuais: “Durante anos infiltrou agentes e monitorou grupos de defesa dos direitos dos homossexuais, enquanto criticava publicamente os ‘desvios sexuais no serviço público.’”
Na opinião de Harold Lief, professor emérito de psiquiatria na Universidade da Pensilvânia, entrevistado por Summers, Hoover era portador de “um distúrbio narcisista que misturava características obsessivas, elementos paranoicos, desconfiança indevida e um certo sadismo. Uma combinação de narcisismo e paranóia produz o que é conhecido como personalidade autoritária. Hoover poderia ter sido um perfeito nazista de alto nível”. Segundo John Money, professor de psicologia médica na Universidade Johns Hopkins e autor, juntamente com Patrícia Tucker, do livro Sexual Signatures, de 1975 (aqui publicado com o título Os Papéis Sexuais,Brasiliense, 1981), Hoover “precisava constantemente destruir outras pessoas para se manter. Convivia com o seu conflito fazendo com que outros pagassem o preço.”



J. Edgar Hoover
Sua dificuldade para lidar com a natureza intrinsecamente imperfeita do humano, juntamente com a sua necessidade de autoafirmação, o levavam a perseguir e punir, no outro, aquilo que não estava bem digerido em si mesmo – o seu desejo erótico em desacordo com a norma hegemônica.
Como tantos incapazes de compreender que o problema não estava em seu desejo – mera possibilidade, tão legítima e comum como a heterossexualidade -, mas, sim, na sua recepção e representação social naquele período, Hoover seguiu o destino de tantos egodistônicos que ainda hoje vemos trucidar, espancar, humilhar, assassinar tantos gays, lésbicas e travestis em nosso país: Matar no outro o espelhamento de si próprio.
Somente quando nossa civilização tiver compreendido as homossexualidades como simples manifestação da eroticidade – já cientificamente comprovada como presente em pelo menos 500 espécies –, é que nos veremos livres dessas formas doentias de personalidade.
Nesse processo, porém, é preciso que consigamos garantir que o preceito constitucional que proíbe qualquer forma de discriminação, independentemente do motivo, seja de uma vez por todas regulamentado, garantindo aos LGBTTs, assim como aos negros, às mulheres, aos idosos, aos deficientes e religiosos, o direito a uma vida digna, livre da discriminação e do preconceito. Livres, sobretudo, da possibilidade de surgimento dessas personalidades egodistônicas, que tanto mal produz – a si e àqueles que por infelicidade venham a se encontrar em seu raio de ação.
Enquanto não conseguirmos, seguiremos contabilizando os mortos – 20, apenas nesses primeiros vinte dias do primeiro mês do ano!
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*Mestre em Política Social e Doutoranda em História/UFF.