Não é só acordo nuclear e a busca de apoio para a obtenção de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU que leva o Brasil a se interessar pelo Irã. A ajuda humanitária a refugiados do regime dos aiatolás também faz parte da agenda entre os dois países. Uma prova disso é que o Comitê Nacional para Refugiados, o Conare, órgão do Ministério da Justiça, concedeu no dia 21 de maio o status de refugiado a um jovem iraniano, de 29 anos, que aportou em terras brasileiras no final do ano passado. O mais interessante, neste caso, além da nacionalidade saia justa do refugiado, é a razão do pedido: a sua orientação sexual, ele é gay.
Minha participação pessoal nesta história deu-se a partir de janeiro, quando a organização internacional Human Rights Watch solicitou o auxílio da nossa entidade, Instituto Edson Neris - IEN, através do companheiro Beto de Jesus, para acompanhar o caso. Beto, à época, morava no Rio de Janeiro. Contamos também com a assessoria de Sonia Correa, pesquisadora associada da ABIA e co-coordenadora do Observatório de Sexualidade e Política. O acompanhamento do caso passou a ser feito por mim, aqui de São Paulo, onde estava o refugiado.
O jovem iraniano passou 17 dias detido pela Polícia Federal no Aeroporto de Cumbica, sob ameaça de ser deportado para o Irã. Por muita persistência de seu namorado, que reside no Canadá, e de algumas ONGs internacionais de defesa de direitos humanos, nosso jovem personagem, aqui identificado pelo nome fictício de Mohammad*, foi finalmente autorizado a entrar no país, e imediatamente enviado à Cáritas, entidade católica conveniada do Acnur, Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados, que se encarregou de providenciar seu pedido de refúgio ao governo brasileiro.
Neste meio tempo Mohammad morou em albergue e em hotéis da Praça da Sé, passou o Natal e o Ano Novo sozinho nesta terra que jamais pensou um dia viesse a conhecer. Ele não fala português, e "male mal" fala inglês. De tudo fez um pouco em sua vida, no Irã: de dono de mercado, a gerente de fábrica de perfumes, passando por treinador de cavalos e mecânico de automóveis.
O menino comeu o pão que o diabo amassou com a polícia política do Irã. Estava ele numa das manifestações de protestos contra o resultado das eleições presidenciais, sob suspeita de fraude, em junho de 2009, quando foi reconhecido por seu ex-vizinho, que é um agente da polícia política. Alguns dias depois sua casa foi invadida, seus pais e irmãs espancados e seus bens apreendidos, inclusive fotos e laptop. Sua conta bancária foi bloqueada. Quando a polícia violou o conteúdo de seu computador, descobriu que, além de opositor do regime, Mohammad era também gay, pois bicha que se preza não resiste a ter um montão de fotos e de vídeos de festas com as amigas, tudo armazenado no laptop.
Já escrevemos sobre o tema anteriormente neste mesmo blog, destacando que no Irã a homossexualidade é crime que pode ser penalizado com a execução por enforcamento ou apedrejamento.
Já escrevemos sobre o tema anteriormente neste mesmo blog, destacando que no Irã a homossexualidade é crime que pode ser penalizado com a execução por enforcamento ou apedrejamento.
A saga de Mohammad começou em 26 de junho de 2009, dois dias antes do Dia Internacional do Orgulho Gay. Sob ameaça de prisão, fugiu e caiu na clandestinidade, em Teerã e imediações. Ficou escondido numa casa de veraneio por uns dois meses. Tentou a fuga do Irã pela fronteira com o Iraque, a pé, mas chegando lá a situação estava mais perigosa ainda para um iraniano num país ocupado pelos Estados Unidos e sob ataques de grupos rebeldes. Decidiu voltar ao Irã e encontrar outra rota de fuga. O objetivo inicial de Mohammad era chegar ao Canadá, onde vivem seu namorado e outros refugiados iranianos.
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Com algumas manobras Mohammad conseguiu sair de Teerã de avião, para Moscou, e de lá para Havana, Cuba. Na ilha de Castro ficou por 50 dias, como turista, e depois tentou chegar ao México. Porém, mal desembarcou, os muchachos de la imigracion já o puseram de volta no avião, com ameaça de deportação para o Irã. Sua passagem aérea previa uma parada em São Paulo, mas aqui também não foi recebido de braços abertos, ao contrário do que usualmente faz o Redentor. Ficou detido, e igualmente sob constante ameaça de deportação. Ele bem sabia o que o aguardava na volta ao Irã: julgamento sumário e execução por ser gay e por traição ao país. De junho a dezembro de 2009 Mohammad ficou errante, correndo de país em país.
Acompanhamos Mohammad desde janeiro e nestes meses pudemos conhecê-lo e à sua história. Sua irmã está refugiada nos Emirados Árabes, após ter sido presa e espancada pela polícia iraniana, por ter se recusado a denunciar o paradeiro do irmão. Seus pais são de classe média e não têm engajamento político partidário, antecedentes criminais, nem vinculações com opositores do regime dos aiatolás. São aposentados. Mohammad é um gay que, de um dia para o outro, teve sua orientação sexual revelada num país onde homossexualidade é crime, punível com execução. Sua família foi advertida expressamente pela polícia: "Diga para seu filho que iremos apedrejá-lo (por que é gay) e depois o levaremos para ser julgado por traição."
Nossos esforços foram sempre para lhe oferecer solidariedade e segurança, para compensar aquele período anterior de terror, perseguição e abandono. Com a dificuldade de comunicação, o apresentamos a um tradutor do idioma persa, farsi, o que melhorou seu desempenho durante as entrevistas no CONARE. Mohammad teve que convencer as autoridades brasileiras de que sua história não era estória. Desfrutamos de sua companhia em alguns passeios e viagens, e o orientamos sobre a melhor condução no relacionamento com as autoridades brasileiras e ongs internacionais.
A principal estratégia foi manter o sigilo. Evitar a publicidade. Não permitir que este assunto fosse usado por interesses políticos em ano de eleição, nem tampouco por setores da imprensa que fazem oposição à política externa do atual governo e consideram a aproximação de Lula com o Irã uma bobagem. Além disso, o sigilo não chamaria a atenção do governo iraniano para o nosso personagem.
Olga Benario
Lembrei-me, no tratamento deste caso, da história de Olga Benário - uma mácula na história do Brasil. Uma má história. A combatente companheira de Prestes, cidadã alemã de origem judaica, foi entregue por Getúlio Vargas, pelas mãos de Felinto Muller, aos carrascos nazistas de Adolf Hitler, que a levaram à morte num campo de concentração.
No começo do mês de maio conseguimos uma entrevista com o Ministro de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, através da FLI - Frente para Liberdade do Irã, associação brasileira de entidades que advogam o respeito aos direitos humanos naquele país. Na oportunidade o caso de Mohammad foi exposto com detalhes, e pedimos a intervenção do ministro junto ao Conare. Outra personalidade que também auxiliou foi Pedro Chequer, representante da Unaids no Brasil. Por fim, depois de quatro meses, tudo saiu como desejado. O status de refugiado foi concedido por razões humanitárias, com a constatação de violações de direitos humanos.
Dois fatos distintos chamaram minha atenção neste emaranhado de coisas. O primeiro foi uma sensação de certa indiferença, quando não de preconceito, que o assunto homofobia e violência contra LGBTs no Irã tem provocado em alguns grupos LGBTs brasileiros. Com exceção de um ou outro oportunista, que explorou o mote para criticar a viagem do presidente Lula, os demais ficaram silentes. Alguns até preferiram enfrentar o tema com análises e justificativas políticas e ideológicas. Chegaram a sustentar que criticar o Irã seria fazer alinhamento com a política externa dos Estados Unidos. Lembrei e comparei a situação com aquela piada irônica de técnicos e especialistas em alimentação, que se reúnem em jantares nababescos, para discutir o problema da fome no mundo.
Sem julgar ninguém, sinto que falta mais discussão e conscientização sobre a institucionalização da homofobia como política de estado em alguns países, onde a homossexualidade pode ser punida até com pena de morte, tais como: Irã, Mauritânia, Arábia Saudita, Sudão, Iêmen e em determinadas regiões da Nigéria e da Somália. Sem esquecer os outros países, que não matam mas prendem homossexuais, como Malawi.
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O segundo fato que me surpreendeu foi que Mohammad encontrou três fadas madrinhas em São Paulo, que o auxiliaram a se instalar e se adaptar na cidade, nos primeiros meses. Foram elas Franco Reinaudo, Marcos Fernandes e Cassio Rodrigo, todos tucanos assumidos, de bicos longos, mas fechados, que se cotizaram no custeio da manutenção do jovem afilhado, com recursos de seus próprios bolsos. Estes tucaninhos me provaram, bem provado, que promoção e defesa de direitos humanos não é monopólio de grupos, e transcende os limites partidários. Em momento algum as madrinhas se utilizaram do conhecimento e do envolvimento com este caso para outro fim, senão o de prestar solidariedade.
Eu fiquei muito satisfeito por ter participado, ao lado de outras pessoas, do trabalho em defesa dos direitos de um perseguido político, de consciência, cujo crime foi ter nascido gay e cujo preço para se manter vivo foi abandonar seu país e sua família. Na impossibilidade de ir até Brasília, na semana retrasada, foi assim que eu marchei e gritei contra a homofobia.
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Mohammad, benvindo ao Brasil. Se joga mona !
PS.- O jornal O Estado de São Paulo está publicando neste domingo, 30.05.2010, uma reportagem com a história de Mohammad. Abaixo segue o link que dá acesso a uma parte da reportagem. Só assinantes têm acesso ao texto integral.
Leia a matéria do Estadão clicando aqui
* o nome fictício Mohammad, muito popular no Irã, foi escolhido pelo próprio iraniano e acabou sendo usado na reportagem publicada pelo Estadão.