sexta-feira, 6 de junho de 2014

O meu primeiro bullying. Colégio Meninópolis. De vítima a algoz: herança maldita.

Quando eu tinha 7 anos de idade, no ano de 1968 - para mim o ano que ainda não terminou - aprendi na prática o que era bullying, ao entrar no Colégio Meninópolis. Escola particular, católica, exclusiva para meninos e dirigida por padres da Congregação Pime, localizada no bairro paulistano do Brooklin, zona sul de São Paulo. Na minha visão de criança os padres do Pime eram grosseiros, falavam alto, e com sotaque de italiano ininteligível. Eram arrogantes, severos e sempre dispostos a repreender gratuitamente, para jamais perder a autoridade. O que me chamava a atenção é que jamais os via sorrindo, exceto quando estavam na presença dos pais de alunos, o que me passava a impressão de serem dissimulados. 


Ao contrário do pré-primário que cursei no ano anterior, no Colégio Jesus Maria José, onde tudo era um verdadeiro Jardim da Infância, os anos posteriores foram tormentosos e violentos, ameaçadores e sombrios, que me deixaram marcas indeléveis e fantasmas que até hoje me visitam, apesar de eu já tê-los expulsado várias vezes de minhas memórias em infindas sessões de terapia.


Não consigo entender como há pessoas que hoje ainda alimentam blogs, sites, listas de conversação e perfis em redes sociais com lembranças e saudosismo dos tempos de infância e adolescência no Meninópolis. Acho que alguém se esqueceu de me avisar que existia um lado bom naqueles anos e naquele lugar. Eu faltei na aula sobre este assunto, ou o meu pai pagou somente a parcela standard, relativa ao lado básico do ensino fundamental da época, que era um atraso. 

O bom do curso, o filet mignon, aquilo que hoje meus antigos colegas sentem saudades e motivos para celebrar nos seus blogs, isto tudo deixaram de me mostrar. Não guardo saudades, nem boas recordações de um único amigo. Nada. O dia que o Meninópolis foi entregue para a administração da Arquidiocese de Santo Amaro, depois de mais de 30 anos que saí de lá, eu festejei a notícia do fracasso do empreendimento empresarial e educativo da Congregação Pime. Posteriormente, no dia que ele fechou em definitivo, eu constatei que eu absolutamente dali era um sobrevivente. Que, apesar do Meninópolis, dos seus padres e de suas professoras, eu havia conseguido sobreviver com alguma sanidade mental e emocional.


Lembro me bem de todas as minhas professoras do curso primário, desde a dona Setuko, do primeiro ano, passando pela dona Pérola, dona Aurea e finalmente dona Mercedes. Escrevi e reescrevi este parágrafo pelo menos umas dez vezes, e a cada uma delas eu qualificava estas professoras com os piores predicados. Decidi por fim e por cautela simplesmente mencionar seus nomes. Estou certo que algumas já se foram, senão todas, mas continuaram habitando em minhas memórias as piores das lembranças. Nunca me senti à vontade, nem feliz, nem confortável, nem porra nenhuma naquele colégio, nem com aquelas professoras. Infância sofrida, triste e oprimida.

Naquele tempo eu não tinha noção de que era gay, que tinha desejo por outros do mesmo gênero, ou mesmo que a vida poderia ser melhor do que eu até então experimentara no convívio com coleguinhas, professoras e padres. Por outro lado, tinha também a limitação dos meus pais em não questionar nem cobrar dos padres e do sistema educacional um tratamento no mínimo justo e ético. Para eles, se havia problema, este era causado por mim e não pela escola e seus educadores. Tenho hoje a certeza que eles não tinham a noção do que se passara comigo durante aquele período. 

Acho que se meus pais ao menos uma vez tivessem me pego pela mão, ido até a escola e apontado o dedo no nariz da orientadora pedagógica ou da secretária da escola, ou do Padre Diretor, para lhes fazer reclamação dos maus tratos a que eu cotidianamente era submetido ou de como era ruim (para falar o mínimo e não perder a compostura) a pedagogia que me era aplicada por aquelas professoras despreparadas, eu certamente seria outra pessoa. Seria mais feliz. 

Fui educado com a ideia de que professores e pais não erram e, se erram, mesmo assim não podem ser questionados. Questionar é desrespeitar sua autoridade. 

Puta merda, fica difícil ser uma pessoa normal, com auto estima, com garra para viver, com vontade de ganhar dinheiro, com coragem de vencer na vida, se já enfiam na nossa cabecinha, desde pequenos, que somos errados até que provemos o contrário. Isto me lembra o papa João Paulo II, hoje equivocadamente canonizado, que disse que a homossexualidade é intrinsecamente má. Daí, não tem escapatória, os gays (LGBT) estão fadados ao fracasso da vida, segundo o infalível e santo papa. Nossa, só de lembrar do santo me dá arrepios. 

Se eu fosse percebido e ouvido pelas pessoas daquela escola, eu teria aprendido mais cedo que a felicidade faz parte do dia a dia, que reivindicá-la é algo natural e normal e que reagir contra a opressão não é ato de revolta e explosão, as quais só ocorrem depois de muito sofrimento represado. Enfim, que todos as pessoas têm direito a reivindicar para obter  felicidade.

Tudo ilusão e sonho da minha parte. Aguentei o pior dos tempos, pela bosta daquela escola, violenta e despreparada. Ainda bem que o Meninópolis fechou, e espero que tenha fechado para sempre!


Mas, o pior mesmo foi quando a vítima se transformou em algoz. E, foi o que aconteceu comigo. Eu passei a praticar com desenvoltura o mesmo bullying que fora vítima, contra meus colegas mais frágeis, como uma forma de sobreviver e superar as próprias opressões que sofria. A consagração da formação do caráter distorcido, o sucesso da educação recebida. Recordo-me de Fernando, um menino meigo e bondoso, que era o meu alvo predileto, a quem eu exercia toda a sorte de agressão e constrangimento verbal. E não havia razão específica, mas pelo simples fato de saber que ele era mais frágil, sensível e vulnerável. Havia um outro também, Carlos, que tinha uma deficiência congênita num dos olhos, que era menor que o outro. E eu, sempre que o via, imitava-o, franzindo um dos lados do rosto.


Ainda hoje vivo com ressentimentos pelas coisas que fiz e pelas coisas que fizeram comigo. Anos depois encontrei Carlos no Fórum. Eu bem que quis me aproximar e falar com ele, mas não tive chance, ele simplesmente fingiu que não me conhecia. Fez ele muito bem.


Não é à toa que o desafio pela igualdade de direitos e respeito à dignidade da pessoa humana são assuntos tão caros para mim, que os tomo como uma cruzada de pleno século XXI.