A cientista política Maria Teresa Sadek fez uma análise sobre a atual crise do Poder Judiciário num artigo brilhante, sério e muito competente, publicado pelo jornal O Estado de São Paulo no dia 14 de janeiro e que está abaixo transcrito. Se preferir clique aqui para ler diretamente no site do jornal. , mas, particularmente prefiro que você continue na nossa companhia.
Vale a pena entender a razão pela qual há juizes que querem a mudança do Judiciário e outros que não querem, o que ela mesma diz ser uma "demanda de dificil reversão".
A história toda da crise do Judiciário tem tomado contornos até então inimaginados em razão da revelação de um relatório do COAF, um órgão da Receita Federal que controla a movimentação de contas bancárias. Este relatório foi encomendado pelo Conselho Nacional de Justiça CNJ e recentemente utilizado em sua própria defesa nas ações promovidas por associação de juizes. O relatório revela que 3.426 juizes e servidores do Poder Judiciário fizeram movimentações bancárias atípicas, envolvendo 855 milhões entre 2000 e 2010.
Isto por que as associações de juizes propuseram uma ação no STF contra o CNJ - Conselho Nacional de Justiça (leia-se a Corregedora Eliana Calmon) por que ela resolveu ver como anda a forturna dos juizes. As ações pretendem tirar a competência da Corregedoria do CNJ para investigar ações de juízes e desembargadores dos Tribunais de Justiça dos Estados. Para se defender Eliana Calmon juntou no processo o relatório do COAF para demonstrar que tem muita coisa ainda a ser investigada.
Isto tudo é muito desagradável e quem sai perdendo é a democracia. A imagem do Judiciário corre o risco de ficar muito suja e vai levar um tempão para se reabilitar, caso estas investigações não sejam levadas adiante.
Gente, juiz ganha bom salário, mas não dá para ficar rico. É o mesmo que ocorre com Auditor Fiscal e Promotor Público que também ganham bem, mas NÃO PODEM ficar rico só com este salário. Não há matemática moderna que os ajude nesta hora. De onde veio esta grana de mais de 800 milhões de reais movimentados entre 2000 e 2010, nas contas pessoais dos juizes que o relatório do COAF denunciou? Isto precisa de uma explicação.
São os primeiros raios de luz que estão entrando na caixa preta do Judiciário. Depois disso foi publicada notícia de que vários juízes no Estado de São Paulo não declaram imposto de renda há varios anos. Vários juizes, repito. A última notícia é de que o Estado de São Paulo (Tribunal de Justiça) foi o que mais teve movimentação de dinheiro EM ESPÉCIE.
Uma pergunta a ser feita é: Por que dinheiro em espécie em grande quantidade circulando e sendo depositado ou retirado das contas de juizes paulistas? Sabe o que isto quer dizer? Que é um indício que esta dinherama toda andou circulando por aí, fora das contas bancárias e do controle das autoridades financeiras. Indícios de ocorrência de corrupção, compra de sentença.
Minha mais sincera solidariedade aos juizes honestos. Eles estão sendo misturados com joio e não podem sequer se defender. Que se separem o joio do trigo imediatamente dando-se nomes aos bois e que os bois joios sejam enviados ao abatedouro.
Há também uma discussão em Belo Horizonte por que o Tribunal de Justiça de Minas Gerais fez 17 promoções de desembargadores que, segundo denúncias, estas promoções são totalmente irregulares. O caso está para ser julgado pelo CNJ. Como se vê, isto não vai parar logo.
Maria Teresa Sadek com a palavra:
MARIA TEREZA AINA SADEK - O Estado de S.Paulo
O Judiciário brasileiro tem sido identificado com uma caixa-preta. O juízo crítico propagou-se. Encontrou receptividade por retratar em uma só imagem a percepção popular de uma instituição fechada e desconhecida. Uma combinação de traços associados ao segredo, à opacidade, ao isolamento em relação à sociedade constrói a representação. Características peculiares da magistratura contribuem para a imagem. Entre elas estão desde garantias constitucionais - vitaliciedade, irredutibilidade de vencimentos, inamovibilidade - até uma tradição assentada na discrição, numa cultura formalista e num linguajar hermético.
Uma magistratura homogênea, corporativa e refratária a críticas resultaria dessa percepção. Para completar, o retrato teria o condão de ser imune ao transcorrer do tempo, guardando no presente as marcas do passado.
Essa representação vem sendo posta em xeque. Aspectos novos indicam o desenrolar de um processo de transformação. Os efeitos da Constituição de 1988 e especialmente da Emenda Constitucional 45, de dezembro de 2004, tornam-se visíveis não apenas no perfil e na atuação da instituição, mas nas características de seus integrantes.
Vários fatores podem ser arrolados como impulsionadores desta nova magistratura. Em primeiro lugar deve-se notar o crescimento numérico, que, por si só, já imporia mudanças. O número de juízes mais do triplicou desde a redemocratização do País, passando de quase 5 mil em 1988 para aproximadamente 15 mil 23 anos depois. A participação feminina, que até os anos 80 era de apenas 8%, atingiu 25%, inclusive com mulheres integrando os tribunais superiores. Essas alterações de caráter demográfico foram acompanhadas de significativas mudanças de natureza sociológica. Houve uma clara democratização na composição interna da magistratura, com uma importante proporção de juízas e juízes provenientes de famílias sem tradição no sistema de justiça e com pais e mães com baixos índices de escolaridade, havendo até aqueles com pais sem instrução formal.
Informações propiciadas por pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em 2005 revelavam que as mudanças em curso não se resumiam a esses aspectos. Sinais ainda mais excepcionais puderam ser observados nas opiniões expressas sobre uma série de questões, incluindo temas relacionados à distribuição de justiça e a questões corporativas. A pesquisa da AMB mostrava que variáveis como gênero, idade, tempo na magistratura, instância de atuação e região apresentavam correlação com avaliações e percepções tanto sobre a instituição como acerca de temas da vida pública. No conjunto, esses dados permitiam concluir que muitos dos mitos, estereótipos e suposições sobre a magistratura não coincidiam com a realidade. A diversidade interna e o pluralismo de opiniões desenhavam um perfil novo da magistratura.
O pluralismo pode ser constatado em manifestações sobre vários temas. Muitas das inovações criadas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) não haviam ainda sido implantadas. Uma, por exemplo, a proibição de contratar parentes para cargos em comissão, obteve o apoio da maioria. Notava-se, contudo, que o apoio era muito mais expressivo entre os juízes de primeiro grau do que entre os que atuavam em tribunais (71% x 58%), entre os com menor tempo na magistratura do que entre os mais antigos (75% x 60%), entre os do Sul do País do que entre os do Centro-Oeste (73% x 60%), entre os que exerciam suas funções nas unidades da Federação com IDH mais alto do que nas de IDH baixo (72% x 67%).
Os exemplos poderiam ser multiplicados. O que se pretende salientar é que a diversidade interna, que desde então já se manifestava, ganhou ímpeto e novos fóruns. O pluralismo tem-se evidenciado não apenas internamente, mas também de forma pública. Posições sobre temas relevantes têm sido explicitadas, ampliando o debate de questões que afetam não só o corpo de juízes, mas a vida social, econômica e política do País.
O recente questionamento da AMB sobre as competências do CNJ evidenciou tanto o pluralismo no interior da magistratura como a ampliação do fórum de debates. Tais fenômenos são auspiciosos do ponto de vista do processo de construção de uma instituição guiada por valores democráticos e republicanos. Ministros, desembargadores, juízes expuseram argumentos revelando suas posições. Divergências vieram a público explicitando princípios em confronto. As discordâncias e sua divulgação mostram quão anacrônica se tornou a figura do "juiz boca da lei", do juiz que não manifesta opiniões, do juiz alheio ao que se passa na sociedade.
Acompanhando e impulsionando esse processo de transformação da magistratura e de sua relação com a opinião pública, os meios de comunicação têm reservado espaço cada vez maior para temas envolvendo o Judiciário, ampliando significativamente a arena de debates. Com efeito, o exame de editoriais, reportagens, cartas de leitores sobre o trabalho do CNJ tornou manifesto o desgaste do paradigma segundo o qual "juiz só se pronuncia nos autos" e questões da justiça são muito técnicas para serem debatidas por não iniciados.
Do ponto de vista da opinião pública, vem ocorrendo um fenômeno que poderia ser caracterizado como de dessacralização do Judiciário, aventando-se a possibilidade de punição de comportamentos desviantes, de questionamentos do que é visto como regalias e privilégios. Tal fenômeno, além de indicar um processo de mudanças no interior da magistratura e na percepção sobre o Judiciário pela sociedade, indica também que exigências centrais da democracia e da República - transparência e prestação de contas pelas instituições - se tornaram demandas de difícil reversão.
* CIENTISTA POLÍTICA, PROFESSORA DO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIA POLÍTICA DA USP, É PESQUISADORA SÊNIOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS E PESQUISAS JUDICIAIS