Hoje, no dia de comemoração da Consciência Negra no Brasil, data que Zumbi dos Palmares foi assassinado em 1695, transcrevo abaixo o artigo do antropólogo Luiz Mott, que faz um questionamento sobre a possível homossexualidade de Zumbi dos Palmares, citando 5 (cinco) pistas nesta direção. Este artigo foi publicado em 1995, no terceiro centenário da morte de Zumbi, e teve reacões de alguns segmentos do movimento negro, revelando grande intolerância e homofobia de pessoas que, em tese, deveriam agir exatamente de forma contrária. Além de trazer questionamentos sobre a orientação sexual de Zumbi, este artigo é também um bom teste sobre a tolerância de lideranças do movimento negro. Qual o problema de Zumbi ter sido gay? Ele seria menos herói, menos negro, menos lider? Com certeza, a resposta será sempre não.
Este artigo foi republicado no livro do mesmo autor, Crônicas de um gay assumido, Editora Record, 2003, p. 155-160 e agora o faço aqui também em memória de Zumbi e em comemoração ao Dia da Consciência Negra no Brasil.
Viva Zumbi dos Palmares!
ERA ZUMBI HOMOSSEXUAL ?
Digo e repito: raramente foi Luiz Mott quem levantou a lebre pela primeira de que personagens históricos ou celebridades nacionais eram praticantes do amor que não ousava dizer o nome. Como leio muito, pesquiso sem parar e arquivo tudo o que encontro sobre homossexualidade, ao divulgar que Cássia Eller também gostava do babado, que Mazzaropi era gay, que Collor idem - estou simplesmente repetindo o que outros autores já publicaram em livros, revistas ou jornais ou faz parte de nossa história oral. Ontem mesmo tive uma enorme surpresa ao ler num jornal que um historiador mineiro declarou que Tiradentes também "jogava água fora da bacia" - embora ainda não tenha conhecimento de seus argumentos. Quem tiver alguma pista, me avise!
Com Zumbi a coisa foi assim: um famoso historiador gaúcho, Décio Freitas, autor de não menos célebre livro sobre o Quilombo de Palmares, declarou a outro historiador, Mario Maestri, especialista em escravismo colonial, que só não escrevia que Zumbi era gay porque tinha medo da reação do movimento negro.
Fiquei com a pulga atrás da orelha, pois nunca tinha imaginado que o herói negro pertencesse ao batalhão dos amantes do mesmo sexo. Comecei a pesquisar as biografias de Zumbi e acumulei 5 pistas que sugerem maior identificação de Zumbi como homossexual do que como heterossexual. Portanto, à indagação: era Zumbi Homossexual? a resposta é: provavelmente sim! Zumbi dos Palmares deve ter praticado “o amor que não ousava dizer o nome”.
Dispomos até agora de cinco pistas que sugerem sua homossexualidade, enquanto não há nenhuma prova definitiva de que o líder quilombola era heterossexual. Desafio qualquer historiador a comprovar, com documentos da época, que o maior herói negro das Américas teve alguma mulher ou filhos. Não passa de mera presunção e miopia sexológica imaginar que o simples fato de ter sido guerreiro valente serviria como prova de que sendo do sexo forte, gostava do sexo frágil. Ledo engano: o maior general da Antigüidade, Alexandre Magno, também foi grande em seu amor pelos rapazes. O famoso “Batalhão dos Amantes de Tebas”, todo ele formado de pederastas, destacou-se por sua inigualável valentia. Frederico o Grande da Prússia e Lawrence da Arábia, entre muitos outros, são exemplos mais recentes de que muitos homossexuais foram notáveis guerreiros. Portanto, não há qualquer incompatibilidade entre Zumbi ter sido guerreiro retado e amante do mesmo sexo.
Insisto: não havendo nenhuma prova da heterossexualidade de Zumbi, apresento aqui quando menos cinco pistas que sugerem que provavelmente Zumbi dos Palmares era “chibungo” (termo de origem angolana, corrente na Bahia atual, sinônimo de homossexual masculino). Tais indícios juntos valem mais do que documento nenhum sobre sua improvável heterossexualidade.
Primeira pista: não há evidência alguma comprobatória que Zumbi teve mulher ou filhos. Para um grande chefe guerreiro, a poligamia era privilégio indispensável. Ganga-Zumba, tio putativo de Zumbi, teve três mulheres, sendo duas negras e uma mulata. Porque Zumbi abriria mão deste cobiçado prêmio, considerando que devido à carência de mulheres, os quilombolas da Serra da Barriga tinham de contentar-se com uma mulher para vários homens? Como informa o historiador negro Joel Rufino, “os brasileiros sempre acreditaram que os negros famosos e ricos devem se casar com brancas”, tanto que autores mais românticos inventaram uma mulher branca para o líder dos Palmares. ”Legenda romântica...” conclui o mesmo autor.
Segunda pista: Zumbi era conhecido por um intrigante apelido: SUECA. Esta informação é confirmada por Clóvis Moura, outro respeitado historiador negro. Segundo o dicionarista Antônio Morais, que viveu em Pernambuco no século seguinte à epopéia palmarina, “sueca” já naquela época tinha o mesmo significado de hoje: “mulher natural da Suécia”. Por que um negão, valoroso guerreiro, seria chamado por nome feminino? Debaixo deste angu tem carne! Nesta mesma época encontramos alguns homossexuais denunciados à Inquisição Portuguesa que também eram chamados por apelidos femininos: “A Galega”, “A Bugia da Alemanha“, inclusive um sodomita negro do Benin que apesar do nome batismal de Antônio, jogava pedra em quem não o chamasse de “Vitória”. “Sueca” é apelido mais adequado para um hétero ou homossexual?
Terceira pista: Zumbi, que ficou coxo num acidente de batalha, descendia dos Jagas de Angola, etnia onde a homossexualidade tinha numerosos adeptos, os famosos “quimbandas”, conforme atestam contemporâneos da guerra dos Palmares, entre eles o Padre Cavazzi e o Capitão Cadornega. Se até em sociedades repressivas e anti-homossexuais o homoerotismo tem batalhões de adeptos, nada mais lógico que também no quilombo de Palmares, onde havia grande falta de mulheres, os “quimbandas” fossem aceitos com naturalidade, como ocorre em muitas comunidades onde há desequilíbrio dos sexos, e que Zumbi também fosse amante de um deles.
Quarta pista: Zumbi, descrito como possuidor de “temperamento suave e habilidades artísticas”, antes de fugir para o mocambo, até os 15 anos, foi criado pelo Vigário de Porto Calvo, Padre Melo, referido como “afeiçoado a seu negrinho”. Ora: nos tempos inquisitoriais a homossexualidade era chamada, com razão, de “vício dos clérigos”, tantos eram os padres envolvidos com as práticas homossexuais. 1/3 dos condenados pela Inquisição pelo pecado de sodomia eram padres. Muitos destes tendo como cúmplices exatamente seus escravos , crias da casa. Os retornos de Zumbi à casa de “seu” padre, depois de tornado quilombola, revelam uma relação profunda que superou as diferenças de raça, classe e idade. “Diz-me com quem andas, que direi quem és...” diz o ditado popular.
Quinta pista: dizem os estudiosos que Zumbi, ao ser preso e executado, a 20 de novembro de l695, foi degolado “sendo castrado e o pênis enfiado dentro da boca”. Macabra coincidência: o Grupo Gay da Bahia dispõe de um volumoso dossier de assassinato de homossexuais brasileiros, onde constam 5 gays, dois em Alagoas, o mesma região onde castraram Zumbi, que foram encontrados mortos exatamente como o chefe quilombola: com o pênis dentro da boca. Uma forma antiga e simbólica de humilhar os “falsos ao corpo” que por não terem usado adequadamente seu falo, tornaram-se merecedores de engoli-lo na hora da morte.
Enquanto não se provar o contrário, com o exigido rigor documental, estas cinco pistas permitem-nos afirmar que o grande Zumbi dos Palmares provavelmente era amante do mesmo sexo. Longe de desmerecer a valentia do maior líder negro do Novo Mundo, tais pistas aumentam-lhe a glória, pois ainda hoje, só cabras muito machos têm a coragem de assumir o amor por outro homem. Baseando nestes fortes indícios, o Movimento Homossexual Brasileiro participou orgulhoso e solidário, ao lado de todos os negros, mestiços e brancos anti-racistas, das comemorações do terceiro centenário da morte de Zumbi (1995) herói negro e provavelmente, depois de Alexandre Magno, o homossexual mais valente de toda História Universal.
Post Scriptum: Por causa deste artigo, publicado em diversos jornais na época daquelas celebrações em 1995 , os muros de minha casa foram pichados e os vidros de meu carro quebrados por alguém que considerou um ultraje um herói negro ser amante do mesmo sexo. Vários líderes negros me condenaram por estar "denegrindo" (sic) a imagem do líder quilombola, outros chegaram a dizer que homossexualismo era coisa de branco e que não existiam gays e lésbicas na África.
Felizmente fui apoiado por grande número de intelectuais e políticos, negros inclusive, que consideraram politicamente incorreta a reação machista e preconceituosa destes negros opondo-se à possibilidade de Zumbi ter sido gay e absolutamente condenável a violência cometida contra mim. Estas reações negativas comprovam o acerto da pesquisa da Data-Folha divulgado no primeiro capítulo deste livro: os negros e afro-descendentes são mais conservadores sexualmente do que o resto dos brasileiros. Conservadorismo ao menos na teoria - e na falação - pois na prática, tenho minhas dúvidas, pois a quantidade e soltura dos gays, lésbicas, travestis e bissexuais negros contradiz a sexofobia e homofobia manifestadas no tricentenário de Zumbi.
Luiz Mott
luizmott@oi.com.br
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